2016
CAUSE MAGAZINE
Entrevista por Letícia Cazarré
LC - Conte um pouco de você e de sua trajetória profissional (nascimento, idade, profissão, cidade onde mora, formação acadêmica e empregos/cargos mais importantes até hoje)
Nasci e moro no Rio de Janeiro, tenho 23 anos. Estudo design gráfico e web design na PUC-Rio. Minha trajetória profissional começou aos 18 anos.
Meu primeiro emprego foi em uma empresa de cenografia de natal para shoppings que se localizava em um galpão na Favela da Maré, na Avenida Brasil. Meu trabalho consistia na concepção dos objetos cenográficos e execução da produção junto a 20 mulheres da comunidade local.
Em 2012 trabalhei com as arquitetas Mônica Penaguião e Larissa Allemand, na Poeira Design e no ano de 2013 estagiei na agência Laet Com., da Ana Laet, na área de estamparia sob o olhar da minhas duas coordenadoras maravilhosas Manuela Nabuco Bonder e Duda Moraes. Acho que a maior parte do que sei hoje sobre padronagem eu devo a elas.
Em 2014, cursei o Procedência e Propriedade ministrado pelo Charles Watson, me tornei freelancer e expandi meu campo de atuação. Todo o meu trabalho acontece a partir da criação e concepção de imagens, falo através delas e isso eu já entendi, mas ainda estou resolvendo. Atuo no desenvolvimento de identidades visuais, concepção de interfaces digitais e layouts de websites. Trabalho também com a criação de estampas para diversos suportes e é através das técnicas de desenho e pintura que crio e coloco no mundo minhas ideias.
No último ano morei durante 40 dias em Barcelona enquanto cursava, no Instituto Europeu de Design (IED), o modulo de verão de Ilustração Criativa ministrado pelo Javier Anguilla. A experiência me trouxe não só conhecimento acadêmico acerca do tema como também a possibilidade de estar inserida nos museus e galerias de arte da cidade. Lá, me apaixonei pelas pinturas Góticas e por Miró e Picasso e pude desfrutar da biblioteca da Fundação Tàpies, na qual passava as tardes livres.
LC - Qual foi o caminho que te levou à arte?
Minhas intensidade. Em 2014, quando imergi no curso Procedência e Propriedade ministrado pelo professor Charles Watson, junto aos professores Eduardo Berliner, Cadu, Frederico Carvalho, Artur Chaves e Luiza Crosman. Eram 12 horas por dia, durante 30 dias, desenhando em pé no ateliê do Charles, em Botafogo, em pleno verão carioca. Acho que ali as coisas aconteceram...
Meu espelho era meu cavalete e as aulas me fascinavam. Me manter trabalhando muitas horas por dia sem saber onde aquilo ia dar gerava um certo frio na barriga, mas o prazer de ter as mãos sujas de grafite me mantinha em processo e produzindo. Foram 30 dias com o suor escorrendo pelo corpo e dúvidas passando pela cabeça, mas percebendo a evolução do meu olhar e do meu desenho. Saindo do curso eu me agarrei nos meus cadernos e fui aplicar o que tinha construído lá. Comecei a pintar quando a gramatura do papel falhou em sustentar meus gestos. Queria descobrir outras coisas, cores, texturas, movimentos.
Decidi ir para Barcelona estudar no ano seguinte e lá eu não desgrudei meus olhos de arte. Vivi nos museus, galerias e livrarias da cidade. Quando voltei para o Rio consegui alugar meu primeiro atelie no Vidigal, em agosto de 2015. Hoje estou com um espaço no Jardim Botânico.
LC - Você é designer e artista plástica. Com quais técnicas você se identifica mais? Houve uma evolução no seu processo criativo em termos das técnicas e elementos que você escolheu usar?
Meu trabalho como artista plástica é o que me mantêm viva. É a partir dele que sinto, me comunico e manifesto. Acho que meu trabalho plástico reverbera no meu design e vice versa. De alguma forma as coisas se conectam, se interligam.
Meu processo criativo é abundante, gosto de fazer muito antes de definir qualquer coisa e é, no processo, criações e rabiscos que encontro algumas respostas. Busco sempre, quando trabalhando, me afastar como indivíduo cheio de desejos e realizar o projeto com objetivos.
Evolução haverá sempre, estou viva e em constante mutação. Tenho a sensação que meu rosto está diferente a cada dia, assim como meu olhar também. Os temas e acontecimentos diários produzem diversos sentimentos e levantam novas questões, a partir disso busco me expressar e vezes funciona. Não me restrinjo a técnicas, busco a ferramenta que melhor se adequa para executar uma determinada tarefa ou uso o que eu tiver, gosto do lixo, dos descartes. Acho curioso quando preciso resolver uma questão e não tenho material. A necessidade gera nova postura e, consequentemente, mais dúvidas e descobertas.
LC - Você trabalha com temas como corpo humano e natureza e costuma fazer estudos anatômicos/biológicos de estruturas diversas como ossos, vaginas, úteros, usando-os como pontos de partida para suas obras. De onde vem essa curiosidade? Você teve alguma influência familiar, de mestres/professores ou algum outro personagem importante na sua trajetória que te abriu os olhos para essa temática ou foi uma descoberta solitária?
Sou inquieta e sempre tive curiosidade a respeito do que existe por baixo da pele. Vejo o corpo como estrutura, a pele como casca/embalagem do que realmente existe, do que somos. Creio que sem as máscaras, em carne, somos todos iguais, não há diferenças.
O incômodo pulsa em mim e ele normalmente é meu ponto de partida junto ao meu olhar. Vejo e sinto, logo tenho necessidade de fazer sentir.
O motivo Corpo foi uma descoberta pessoal, mas nego dizer que tenha sido uma descoberta solitária. Sou abastecida por relações sociais como qualquer ser humano e creio que as injeções com o assunto foram sendo aplicadas em mim ao longo da vida. Sempre gostei das formas, das texturas, do calor, da potência e da fragilidade.
Há conforto também quando estou em contato com a terra, com outros corpos, com o que é natural.
Em janeiro de 2015 convivi durante 40 dias com os índios no Alto Xingu. Fiquei lá morando na oca, dormindo em rede, ajudando as mulheres a cuidarem das casas, aprendendo sobre os grafismos indígenas e percebendo a cultura. Posso dizer que foi uma das experiências mais intensas que tive até hoje. Lá, a questão do feminino e do corpo se sobrepuseram. A nudez se tornou confortável, familiar.
LC - Sua série de pinturas intitulada Carne e Corpo é forte e impactante. Em alguns pontos remete a trabalhos de artistas já consagrados como a brasileira Adriana Varejão e o chinês Zeng Fanzhi (Série “Meat”), ambos recordistas mundiais em valor de venda de suas telas. Você foi influenciada de alguma maneira por esses ou outros artistas na escolha das cores, das técnicas ou do tema de sua série?
Quando comecei a sentir a manifestação do projeto CarneeCorpo, em 2013, ainda não pintava. Fazia uso da fotografia e do trabalho com a argila para me expressar. O vermelho é ferramenta para me comunicar, o encontro na personificação do sentimento inquieto de angústia. A Adriana Varejão é uma referência sim, mas não por valor de venda, admiro o trabalho dela desde a concepção à execução das obras. Acho que compreendo o que ela expõe.
Busco em outros artistas também caminhos para conseguir expor o que sinto, mas minhas maiores referências são os frutos e observações das minhas vivências. A natureza é um banco de dados para mim. Através dela, sob um olhar macro, percebo a carne do mundo. Relaciono a natureza ao ser humano, potencializo a pintura a partir de muito trabalho e processo. Voltando às referências, os estudos anatômicos de Leonardo da Vinci guiam grande parte do meu trabalho, além das obras da Louise de Bourgoise, das pinturas do Francis Bacon, dos trabalhos do Chaim Soutine, William Kentridge, Èdouard Manet, Anish Kapoor, Jenny Seville, Cecily Brown, Cris Burden, Jeff Koons, entre outros.
LC - Sua arte provoca nas pessoas sensações fortes e algumas chegam ao ponto de reclamar em redes sociais. Te incomodam os comentários ou a reação negativa dessas pessoas ou você já esperava por isso enquanto pintava? Como você reage às críticas?
Nunca esperei a repercussão. Pintava e ainda pinto para conseguir me manter viva, pulsando. As críticas nas redes sociais já me incomodaram, atualmente fico satisfeita com o feedback, independente de ser positivo ou negativo. Agarro-me ao fato de que estou fazendo sentir e a intenção é essa mesmo, gerar sentimento: embrulho ou gozo.
LC - Você diria que seu trabalho é permeado de alguma forma pelos conceitos de Morte e Vida?
Sim. Creio que meus sentimentos são propulsores do meu trabalho e para viver, mesmo que flertando com a morte, preciso trabalhar. Minhas inquietações e o desconforto da minha alma são a morte se fazendo presente. Penso que ela é silenciosa, mas avisa por entre sussurros e é através da busca pela transformação do sentimento que trabalho e me faço viva, presente.
LC - Que outros temas te fascinam? Você costuma migrar de um tema a outro apenas quando sente que já exauriu o primeiro ou pode começar a pintar outras coisas mesmo ainda estando conectada a um trabalho em particular?
O mundo me fascina. O espaço e o tempo me permitem compreender as coisas de maneira diferente a cada vez. Nunca somos os mesmos, ao menos, não eu. Sou irregular, instável e o meu olhar também. Pinto o que vejo e posso perceber diálogo dentro do meu corpo de trabalho. Acho um afronto crer que eu possa ter exaurido um tema. Estou em processo, investigando, não sei se algum dia vou dizer que concluí algo. Atualmente atenho-me em seguir questionando o mundo e a mim através da pintura e do desenho.
LC - Você trabalha como designer fazendo trabalhos de estamparia, colagens, sites, entre outros materiais visuais. Conte um pouco do que está fazendo agora além da pintura. São esses projetos que te sustentam e permitem dedicar o tempo livre à arte?
O design paga as minhas contas, preciso dele para poder pintar, mas não o renego. Foi ele quem me acolheu primeiro, me deu espaço e ferramentas para me expressar, proveu oportunidades e me auxilia na logística dos processos. O design é meu lado pragmático, objetivo, mas acredito que eu seja uma grande esponja; meio polvo, meio camaleão. No momento estou me dividindo entre o desenvolvimento de um website para a ONG One by One que ajuda a dar mobilidade para crianças com problemas cognitivos e motores, enquanto também realizando um projeto de estampas para o interior de um barco que será usado para charter e simultaneamente atendo a marca de moda praia carioca Prints no desenvolvimento de estampas e resolvo algumas questões gráficas.
LC - Você pretende focar cada vez mais no trabalho de artista plástica e viver exclusivamente dele, ou gosta do lado designer?
Não consigo prever o que vai acontecer, mas gostaria, sim, de poder dedicar mais tempo ao meu trabalho plástico. Creio que me manterei trabalhando e me dividindo entre os dois lados pelos próximos anos e tentarei encontrar no processo as respostas.
LC - Sua família acompanha e apoia sua dedicação às artes plásticas?
Sim. Minha família é minha base, eles são meus pilares. Não compreendem tudo, mas apoiam minha dedicação, entendem o meu espaço, respeitam os meus limites e questionam sem ladainha. São deles também os primeiros olhos que veem o que produzo normalmente. Somos próximos, nos respeitamos e apesar das diferenças, dialogamos para nos entender.
LC - Você tem ídolos ou mestres?
É volúvel, eles se transformam com o tempo. As vezes me vejo obcecada pelo trabalho de um e minutos depois as pinceladas de outro me incomodam. Meus mestres são aqueles que geram em mim impulso e levantam questões. Para me guiar acabo por me ater ao processo de produção e a partir das relações interpessoais germino sementes e trabalho para desenvolver minha linguagem.
LC - Conheci seu trabalho por meio do Instagram. Você costuma usar as redes sociais para mostrar suas referências, mas também publica imagens de suas telas. Você acredita que isso ajude a divulgar o trabalho para uma audiência muito maior do que teria com uma exposição tradicional? Muitas pessoas te procuram depois de terem contato com o seu trabalho pela internet? Você recebe encomendas, por exemplo?
As redes sociais são facilitadores, ferramentas. Não sei se o poder de alcance é maior que o formato tradicional de exposição. Tenho a sensação que pela internet perco muita potência nos trabalhos expostos. É dual. Enquanto presente, in loco, o observador terá uma experiência controlada, pré concebida, pensada para ele. Quando online, o usuário está não só percebendo meu trabalho, mas também envolvido em outro espaço, atendendo a outras questões. O formato digital restringe bastante (perco cor, textura e profundidade), mas é um bom espaço para registrar os processos e caminhos. Há a informalidade também, não estou sempre buscando divulgar meu trabalho, muitas vezes quero apenas compartilhar meu olhar ou momento, guardar a imagem. Gosto do formato de postagem do Instagram, é veloz, objetivo e despojado. A maior parte das pessoas entra em contato após conhecer minha linguagem online, mas sinto que o mundo digital funciona mais como uma janela. Normalmente as encomendas surgem a partir de encontros físicos com as peças e comigo.
LC - Além de lançar mão da internet como ferramenta de divulgação, você ainda acredita nos formatos tradicionais de exposição? Pretende expor suas obras em alguma galeria ou espaço cultural em breve?
Claro. Como disse, a internet é facilitadora, ela não substitui o mundo físico. Acho que a relação com o espaço define grande parte da experiência do observador. Gostaria de estar em uma galeria onde me sentisse confortável para dialogar e desenvolver novas peças e que pudesse me representar e abrigar meus trabalhos. Ainda não surgiu a oportunidade, mas não tenho pressa, continuarei investigando e desenvolvendo minha linguagem.
LC - Você preparou com exclusividade uma série de pinturas para esta edição da ‘CAUSE Magazine. O que tinha em mente quando pintou as telas?
Confesso que me intimidei quando surgiu o convite que trazia o motivo Vida e Morte. Sempre entendi que a potência da vida se faz através da nossa certeza para com a morte, mas nunca tinha usado o sentimento como enunciado. Para executar o trabalho estudei as palavras, suas origens e representações e busquei em Freud textos a respeito das pulsões. Acabei por encontrar, durante minha pesquisa, mais dúvidas. Preparei meu enunciado visando expressar, através da pintura, os sentimentos e as pulsões. Era véspera de Natal e meu corpo já estava cansado do ano corrido. As sensações eram intensas, estavam potencializadas. Resolvi terminar uma tela que tinha começado em abril do ano anterior. Foi minha melhor decisão. A partir do comprometimento em finalizar a tela, e do incômodo que habitava meu corpo dialoguei com telas menores. Pintei os orifícios, a incoerência, o medo, o silêncio e fui percebendo a abundância de vida no corpo do trabalho como um todo. As fotos que acompanham essa entrevista também são parte do trabalho. Busquei a Priscilla Jammal porque queria um olhar feminino, desejava a identificação. Foi surpreendente o processo. Confiei a ela o registro do meu corpo e quando vi, reconheci os sentimentos. Penso que enquanto eu me atinha em personificar a morte me fiz presente, viva.
"When I die I will soar with the angels
And when I die to the angels
What I shall become you cannot imagine."
~ Rumi
LC - Suas telas estão à venda em algum lugar? Você acredita que exista um caminho mais adequado para o contato entre o artista e o comprador do que as galerias de arte? Acha que suas obras podem ser vendidas também pela internet?
Ainda não estão à venda em nenhum lugar que não comigo. Acho que a internet é uma ferramenta que facilita a venda e a visualização em maior escala, mas eu ainda gosto mais do mundo físico.
LC - Quais são seus planos para este ano?
Pretendo trabalhar o dobro e seguir buscando o equilíbrio entre as vontades do meu corpo e os limites da minha alma.





